Escritora, ensaísta, jornalista. Cláudia Galhós é tudo isto. É, sobretudo, especialista em artes performativas. Presentemente, a autora de Pina Bausch e O Tempo das Cerejas, entre outros títulos, tem em mãos um projeto de livro dedicado às iniciativas, programas e políticas desenvolvidas pela GDA e pela Fundação GDA nos campos da ação cultural e social.

Trata-se de uma análise do caminho percorrido ao longo de uma década e de um olhar para o património, intelectual, económico, social e simbólico entretanto acumulado. Um trabalho que vai aferir o impacto da ação da GDA e da sua fundação no tecido criativo nacional e no papel público do artista intérprete na sociedade.

 

Tem feito um trabalho de sapa nos arquivos da GDA e da Fundação GDA. Qual a sua impressão, depois mergulhar neste trabalho?

Encontrei aqui uma perspetiva inteligente, generosa, justa e realista. O que sobressai imediatamente é o uso com integridade, e fundado nos valores essenciais de uma sociedade justa, dos recursos gerados pela sociedade capitalista para, sem a pôr em causa, investir e promover um dos seus pilares fundamentais: a cultura. E isso é extraordinário! E devo realçar que contei também com o trabalho realizado pela Carmo Burnay, a qual efetuou um levantamento labiríntico, em termos de números, documento a documento.

Como assim?

A GDA foi criada em 1996 para cobrar os direitos conexos dos artistas, intérpretes e executantes, fazendo por estes a distribuição proporcional das receitas que o seu trabalho gerou. Por imperativo legal, criou, dez anos depois, um fundo social e um fundo cultural para o qual tinha de alocar um mínimo de 5% das receitas cobradas. Essa percentagem representa um gesto altruísta de cada artista cooperador que abdica na distribuição de direitos e que reverte para um bem comum.

Ao criar a Fundação GDA, em 2009, para gerir esses fundos, alargou o âmbito da sua intervenção, passando a abranger não apenas os artistas cooperadores da GDA, mas toda a área artística, incluindo aqueles que trabalham na expressão mais experimental e alternativa, que não geram diretamente recursos financeiros. Ou seja, há um gesto inverso àquele que fundamenta o preconceito, que considero justo, relativamente à indústria cultural: a fundação vai alargar o âmbito de intervenção da cultura à arte, sustentada numa visão de sociedade de cidadãos emancipados, numa ideia de futuro, de civilização. Depois, em termos do que disponibiliza para esse investimento foi mais longe do que era a sua obrigação legal quando, em Assembleia-Geral de cooperadores se decidiu alocar um contributo mais generoso para as áreas social e cultural: 15 por cento. Isso aconteceu porque houve pessoas, como o Pedro Wallenstein [presidente da GDA], entre outros, que entendem não bastar fazer os mínimos para que o investimento nos artistas seja significativo e não apenas simbólico.

 

Qual a particularidade do posicionamento da GDA e da sua fundação no contexto dos apoios à atividade artística?

A GDA e a Fundação reconhecem que há uma lógica de funcionamento de um mercado de produção de bens. Neste caso, bens culturais. Esses têm um valor quantitativo e económico, mas também têm um valor qualitativo e simbólico fundamental. A articulação entre os dois multiplica o valor de ambos e contagia-os com um valor que, isolados, não teriam: valor material e imaterial, financeiro e imagético. Essa lógica funciona, gera dinheiro e viabiliza uma ideia de futuro sustentada na arte e na cultura como alicerces essenciais.

A GDA cobra e distribui o dinheiro gerado pelo trabalho dos artistas intérpretes e executantes. Depois, introduz um elemento ético e moral ao canalizar, através da fundação, uma percentagem das receitas para programas e iniciativas que têm um valor que podemos designar de justiça social. É o próprio mecanismo de funcionamento do mercado que permite que esse dinheiro seja canalizado para uma ideia mais diversificada e ampla.

Ou seja, as cobranças feitas pela GDA, além de remunerarem o trabalho dos artistas, revertem também para a área artística, cultural e das indústrias criativas, fomentando o desenvolvimento de todo este sector.

Isto é extremamente importante, porque vivemos numa sociedade capitalista em que cada vez é mais difícil as áreas artísticas existirem por elas próprias, o Estado revela-se incapaz de acompanhar o desenvolvimento da massa crítica e criativa que tem surgido e se tem diversificado em Portugal em todas as áreas, e é urgente encontrar fontes de investimento alternativo para as artes – não apenas a cultura ou indústria cultural – se não queremos abdicar de uma ideia de futuro. O mecenato não é suficiente, o apoio do Estado não consegue acompanhar a diversidade existente, instituições emblemáticas neste campo, como a Gulbenkian, estão a reduzir a sua contribuição… Ao mesmo tempo, é também cada vez mais difícil haver uma perceção pública da importância da criação artística e da indústria cultural quando assistimos às tensões criadas por estarem a ser postas em causa outras áreas básicas de salvaguarda do valor humano e do Estado social, como a saúde e a educação.

 

O que torna, para si, o trabalho da GDA e da Fundação GDA um caso de estudo interessante?

 

Se a Fundação GDA e a GDA são capazes de, usando um mecanismo capitalista, diversificar o âmbito de distribuição do investimento aos artistas, incluindo artistas, intérpretes e executantes que não participam, de um modo evidente e direto – apenas evidente e direto, porque participam mas é preciso ter visão para o reconhecer – nesse processo de produção de mais-valias, então é claramente um caso exemplar que prova que é possível pensar uma sociedade que inclua essa diversidade: arte que pesquisa, experimental, com sentido crítico e um mundo mais global de cultura, a indústria cultural.

Este facto é extraordinário: conseguir que os mecanismos da lógica do mercado capitalista funcionem para o bem comum. Cria-se um bem, música por exemplo, que produz dinheiro e remunera o trabalho, gerando um remanescente para ser investido na valorização do trabalho dos artistas, o que acaba também por enriquecer a base cultural e artística da sociedade. Esta fórmula é completamente extraordinária e lógica.

O efeito desse trabalho já é mensurável? Já se sente?

Sente-se a vários níveis. Os números, que estarão plasmados no livro, permitem fundamentar um discurso do valor quantitativo do que está a ser feito. É sobretudo a partir de 2015 que há um salto quantitativo imenso. Embora coincida com um retomar da economia, esse salto deve-se também a uma maior eficácia das cobranças feitas pela GDA e à própria evolução interna e organizativa da fundação. Nesta, assistiu-se a uma complexização das áreas de intervenção e das iniciativas, refletida na diversificação das áreas apoiadas e na forma mais estruturada e regular com que a fundação agora organiza os seus programas de apoio.

No plano qualitativo, os números revelam um imenso território e dinâmicas, quer ao nível do teatro, da dança, da música e do cinema, que só existem graças ao apoio de complemento que a Fundação GDA proporciona ou são muito marcados por ele.

 

Pode dar exemplos?

A circulação de espetáculos de artes performativas é um deles, mais ainda quando se continua a não conseguir resolver a questão da descentralização. O programa de Apoio à Edição Fonográfica de Intérprete é outro exemplo, aqui esse impulso tem permitido que sejam editados vários trabalhos de autor que acabam por ter sucesso, ou pelo menos impacto e reconhecimento comercial. Numa lógica pura de mercado, que filtra a produção mais por critérios quantitativos do que qualitativos, esses projetos não teriam tido a mesma capacidade de se concretizarem. Estes programas são fundamentais para regular essa lógica esmagadora.