Tomara

 

De exercícios filosóficos que se transformam em tratados lançados para o barulho dos nossos dias está o mundo empacotado e a rebentar por todas as costuras que o cosem. Sabe-se – julgo eu que sei – que escolhemos pouco, e que do quase nada que se planeia sobrevem, e suplanta, a aleatoriedade dos acontecimentos. Porém, vestimo-nos, se de sapiência formos ricos, do que vale a pena. O Filipe Monteiro é todo assim e a sua história é feita dos destinos que considerou, a galope da sua gentileza e temperança individuais, cuidar e tomar com devoção e empenho.
Mesmo nos tempos por maturar em que a idade era de contabilidade curta, a música e a habilidade para ela gizaram um caminho calculável: o som, os instrumentos, as melodias, tinham vindo para ficar. Como aprendiz, abraçou desde muito novo aulas de órgão, piano e guitarra. As seis cordas foram – são! – a sua predilecção, mas não desprezou, muito pelo contrário, os anos que passou na Banda Filarmónica de Loures. Lá aprendeu, numa dimensão, diríamos, mais académica, mas cheia de informalidade, a ler e a escrever notas, compassos, acordes e outros quinhentos que na arte musical podem importar. Já adolescente começa a criar, responsabilizando-se por composições que forraram peças de teatro. Depois de passar por algumas bandas de garagem, experiência rica e frutuosa, colabora na formação dos Atomic Bees e com eles edita um único registo, “Love Noises and Kisses”. Rita Redshoes, um dos membros constituintes da banda, segue carreira a solo, mas Filipe Monteiro continuaria a acompanhá-la nessa viagem. Sempre com a música nos dias, veio o Curso de Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes. A imagem (vídeo) implanta-se nos gostos maiores de Monteiro, passando daí em diante e até hoje a trabalhar com nomes como Da Weasel (já extintos), Paulo Furtado, David Fonseca, Rita Redshoes, António Zambujo e Márcia, produzindo videoclipes, Dvd, documentários e desenhando a parte visual de alguns concertos dos artistas supracitados. Concomitantemente, trabalhou como músico (de estúdio e ao vivo), arranjador e produtor de discos de Redshoes – “Golden Era” em 2007 e “Lights & Darks” em 2010 – e de Márcia – “Casulo” e “Quarto Crescente”, este em co-produção com Dadi Carvalho (Marisa Monte, Tribalistas, Carminho, A Cor do Som, Caetano Veloso…).
Como se alcança, Filipe Monteiro deu sempre muito e mais para e com os outros, avançando altruísta por dedicação, amizade e profunda veneração à arte. O músico-homem agora é mais: o homem também músico é pai, marido, coisa-tudo. E vem, soberano de afecto, explicar-nos tudo num tim-tim por tim-tim arrebatador a desfilar por entre fios de guitarras, pianos, harmonias vocais, arranjos de cordas e metais, desassombradamente e com uma simplicidade que comove. A primeira obra em nome próprio do Filipe chama-se Tomara. O título não serve trocadilhos, antes balanceamentos pessoais viscerais, oferecidos limpos e a promoverem uma edificação imagética que se desenha com imediatez no nosso corpo. Num serpentear de temas instrumentais e outros cantados – nestes narrativas sobre os que o salvam e oxigenam -, vamos de cabelos ventados por estradas largas, desertos parcamente despidos, primaveras e planetas belos carregados de uma melancolia reflexiva. O Filipe consegue, de forma singular, focar o ouvinte para uma espécie de dimensão supra-emocional: quando nos canta os primeiros dias de paternidade, o amor-tridente que lhe é milagre, o canto do tecto do quarto que lhe ocupou horas infinitas e mal-dormidas, mas também o que foi e o que pode ser adivinhado quando não lhe escutamos o timbre. Nesta estreia, casa-se de forma imaculada e muito competente o sonante e o que, sem darmos conta, julgamos ver.
O Filipe é canções e, com diligência e mestria de relojoeiro, deixa-nos entreabertos os acessos para o seu mundo encantatório.
Tomara é uma maravilha pungente.

Discos